No início da Ilíada, já no primeiro canto e primeiros versos, acontece um grande massacre em consequência de uma prece e da ira de um deus. Coloco aqui os versos em que isso acontece sob a tradução do Trajano Vieira:
mas à margem do mar que plurirressoava se recolheu distante a fim de orar ao filho de Leto, belas tranças, delongadamente: "Ouve-me, arco argênteo, protetor de Crisa e Cila imortal, ó detentor de Tênedos, Esmínteo! Se erigi um dia um templo a ti, se em teu honor queimei as coxas gordurosas de touros e de ovelhas, cumpre o que ora rogo: dardeja os dânaos, cobra as lágrimas que verto!" Findou a prece, e Febo Apolo o escuta. Desce dos píncaros do Olimpo, coração irado, com o arco a tiracolo e o carcás fechado. Tintinam flechas sobre os ombros do colérico, que avança, similar à noite. Então estanca longe das naus e vibra um dardo: era sinistra a sibilância proveniente do arco prata. Mirou primeiro os mulos e a matilha arisca, depois seus dardos afiados buscam homens; e as piras sempiardiam, cheias de cadáveres.

Se você não é muito familiarizado com Apolo, entre os epítetos dele, está Akestór (Ἀκέστωρ), literalmente aquele que cura, traz saúde e afasta o mal. Mas aqui vemos Apolo, irado, putasso da vida depois de ver um de seus devotos chorando e clamando, descendo do Olimpo, sacando o arco e basicamente trazer pestilência e doença pra galera. Que coisa né? Por que uma divindade que cura, traria a peste para as pessoas?
A gente “gosta” de binários
A gente vive em um contexto social que é muito fácil pensar de forma binária. A gente nasce e já nos colocam em um binário, homem e mulher. A gente cresce e quer colocar todo mundo em uma caixa de pessoa boa ou ruim, preguiçosa ou motivada, generosa ou sovina, amigo ou inimigo. No fundo sabemos que a vida é um pouco mais complicada que isso. A gente já foi o vilão na vida de alguém e trouxe pestilência para outras pessoas, mas não somos intrinsecamente ruins.
Fazemos isso com os deuses também. Tal deidade é boa, só traz coisas fofinhas, tal deidade é de “luz”. Apolo é uma demonstração de que isso não é verdade. Um deus jovem, solar, luminoso, curandeiro, mas ele pode trazer doença pra terra e pras pessoas. Apolo não é um conceito fechado. Da mesma forma, o divino não é um conceito fechado ou algo que conseguimos compartimentalizar. Bom e mau, homem e mulher, céu e inferno são construções opostas que, se a gente para pra trabalhar com o oculto, não fazem sentido.
Quando o que está em jogo é a proteção da sua vida e da sua comunidade, da sua família e amigos, talvez você cruze a linha que separa o que você considera virtuoso ou não. Isso te faz uma pessoa ruim?

Nós e os Deuses somos mais que isso
Cada pessoa contém em si aspectos bons e ruins. Cada pessoa contém em si masculinidade e feminilidade. Uma montanha tem seu lado ensolarado e seu lado escuro. O local onde cada lado se manifesta troca de lugar a medida que o sol muda de posição. Somos produto do ambiente em que vivemos, então é importante que a gente consiga enxergar o mundo sem tentar atribuir tudo em caixas hermeticamente fechadas. Caixas são limitantes. O que você ganha limitando uma divindade? O que você ganha limitando a si mesmo?

O Divino é uno e uma divindade é parte desse uno manifestado sob um aspecto. O Uno não é binário, não é um homem ou um velho ranzinza e não é uma mulher grávida da terra, mas pode ser os dois juntos ou nenhum. Toda vez que você tenta encaixar o oculto de forma lógica, não só você perde a oportunidade de ter uma experiência espiritual mais completa, você também limita seu poder pessoal e limita seus caminhos.
Quando sua proximidade com o oculto aumenta, você percebe que aquela divindade que você cultua não é um homem ou uma mulher e, mais do que isso, não apenas trabalha com os aspectos que você aprendeu que ela trabalha. Quanto mais você se aproxima do divino, mais você percebe que nem você é só isso, você não é apenas esse corpo que te disseram que é homem ou mulher, você não é seus sentimentos, erráticos num dia e calmos no outro, e você não é seus pensamentos que se manifestam como tempestade. Você é muito maior que isso.